O Oblívio de Pierrô
Pierrô se considerava um homem simples. Isto era, claro, uma grandessíssima mentira,
já que qualquer um que preze a simplicidade (como Pierrô o fazia) vem de uma tradição de ter atrás de si todas as complexidades da vida. Era verdade, porém, que ao tratar de enigmas que a vida tipicamente nos propõe, não raro Pierrô os resolvia rendendo a estes a uma naturalidade inacreditável. "Se levarmos em consideração que..., dir-se-ia que se deve agir de modo que...”, costumava dizer. Não foi de se impressionar (ou foi, ainda que se considere tudo) que a mesma pragmática aflorasse na cabeça de nosso triste herói quando Pierrô decidiu que deveria morrer.
Começou quando Pierrô finalmente se deu conta do que ele próprio era. Sabia o que era, isso sabia havia muito, mas nunca compreendera o que isso significava, como é comum acontecer com todos nós. Não sabemos o que é compaixão de verdade até vermos alguém em necessidade pedir de joelhos. Não sentimos nosso coração enternecer de verdade até vermos a pessoa amada chorar. Sabemos de muita coisa, mas não compreendemos nada até que a experiência surja. Assim foi quando Pierrô entrou em um momento de contemplação, aqueles em que se olha para tudo e nada ao mesmo tempo, que, com uma concentração distraída, os pensamentos voam livres e exploram níveis da consciência mais obscuros, geralmente guardiões de grandes segredos. Foi em um bar qualquer, com pessoas não muito conhecidas, na espera de uma bebida e olhando para um quadro, que Pierrô desvendou-se a si mesmo. Não se pode exigir que um homem que contempla explique o caminho para seu raciocínio e nem sempre até mesmo o próprio raciocínio. Muitas vezes saímos desse estado sem nem lembrarmos o que se passava em nossas cabeças. Passamos por todos os segredos, todas as repressões, todas as memórias, que ficaram como cicatrizes e que silenciosamente
regem nossos atos, sem as reconhecer. Às vezes, porém, olha-se bem no fundo de si mesmo e voltamos heroicos com o novo conhecimento O elixir de Pierrô foi descobrir que era incapacitado para a vida. Não sabia e não queria saber de quase tudo que pediam dele: não conseguia e nem lhe agradava a ideia de ter emprego fixo, não queria terminar sua graduação, não conseguia manter estável qualquer relacionamento, etc. Enfim, não queria ter o que os outros queriam, mas isso significava que não teria nada? Não sentia que tinha descoberto sua vocação. Gostava de escrever, mas achava que não tinha o que precisava para viver disso. Era meio comediante, se sentia muito contente em fazer as pessoas rirem, mas não era sempre que tinha a disposição de falar. Suas grandes demonstrações de sociabilidade eram doces mentiras, das quais ele se alimentava com a finalidade de mostrar a si mesmo que vivia em tua vida. Trazer o riso, se mostrar carismático, conquistar até os tímidos eram todas atitudes forjadas, decepções para que os outros e principalmente ele mesmo acreditasse que era, de alguma forma, capar. Debaixo das mentiras, sentia-se excluído, sem as habilidades que a vida exigia, sem a estabilidade emocional que era necessária.
A verdade é que não sabia que sentia tudo isso. Maior parte do tempo se sentia dormente. Tentava eliminar essa sensação se apaixonando, se aniquilando em bebida e cigarros ou escrevendo. Foi só durante uma grande paciente olhada ao seu próprio abismo que Pierrô viu o abismo olhar de volta e cuspir todos esses segredos.
Depois, começou a observar que as outras pessoas por ali, até mesmo as que mais lhe eram próximas, estavam todas mais ou menos de acordo com o que a vida era. Mesmo diferentes entre si, em um nível básico, todos compartilhavam das mesmas crenças: sabiam o que podiam pedir do mundo e das outras pessoas e, pior de tudo, não precisavam contestar isso. Não que não houvesse nada de errado, nem que não estivessem talvez iludidas, mas acreditavam que era possível consertar o que era preciso (leia-se, tinham fé, de qualquer forma). A princípio, Pierrô acreditava que todos eram parecidos, incluindo ele próprio, e que tentavam se acertar no teatro da vida. Durante sua contemplação, porém, descobriu sua falta de esperança, que o fez descartar esta hipótese, aceitando que estava de fato atuando sozinho.
Não havia negociação com o universo, não havia ligação ao SAC cósmico, o que ele queria não estava no catálogo da vida. As necessidades que definiam o que é ser Pierrô não podiam ser atendidas. Pela primeira vez, entrou em contato de verdade consigo mesmo, somente para descobrir que era uma anomalia, um ser definitivamente incompleto e incapaz de ser feliz. Um erro da natureza a ser eliminado e jogado aos vermes.
Se pudéssemos ter ouvido o que se passava na cabeça de Pierrô neste momento, de maneira sintética, o que escutaríamos seria uma sentença fatal, em um tom silógico, quase que como um tratado filosófico organizado em premissas: não sendo feito para a vida, Pierrô precisava morrer. Por sua natureza lógica, Pierrô não entrou em pânico, como seria esperado no “desespero”, mas nem sua sabedoria podia ter impedido uma amarga melancolia de se instalar na sua alma. Ele era um daqueles casos curiosos de homem possuidor de uma inteligência elevada e um coração profundo. É bem sabido que grandes homens (como Pierrô certamente foi) sofrem de uma tristeza igualmente grande.
– Pi, cê tá bem?
– disse uma voz meiga muito preocupada, já um tanto ébria, interrompendo a tempestade na cabeça de Pierrô.
– Tô sim, nem se preocupe
– respondeu, atuando ao máximo, mas já nem conseguindo esboçar um sorriso. Ao prever um silêncio revelador, emendou com:
– Tô indo já, Colombina. Vou só chamar um táxi. Parabéns de novo!
– enquanto bebia o mais rápido que podia a recém-chegada cerveja. Colombina abraçou-o de maneira lenta e um tanto demorada. Enquanto Pierrô tentava larga-la, ela sussurrou:
– Fica bem, viu? Não quero te ver aí tristinho!
– e beijou o rosto de Pierrô.
– Fique susse, pequena. Só ando meio...cansado.
Então, fugiu o mais rápido que pode do bar. Não chamou um táxi, não queria ter o risco de conversar com alguém, ainda que soubesse que a cidade não tinha um povo muito acolhedor. E a noite também lhe era confortável. Gostava do frio, das luzes amarelas, do céu avermelhado. Na cidade, a noite nunca é escura.
Com o passo desacelerado depois de algumas quadras, sentiu o ar frio quebrar em seu rosto e acendeu um cigarro. Estava com desgosto por deixar com tanta pressa uma pessoa que o queria tão bem. Colombina era a única com quem se importava no bar inteiro e dispensou até o carinho dela. Era como se duas forças crescessem, amava-a mais por seu carinho e queria protegê-la da verdade mais ainda pelo seu amor. Pierrô estava preocupado agora em como deixaria uma criatura tão inocente, tão diferente dele, saber que ele queria morrer. Seria devastador para os dois. Ela nunca entenderia, não era possível, vivia em um mundo um pouco menos amargo que o dele. Ter um relance de uma escuridão tão profunda podia gerar um grande sofrimento, acreditava Pierrô.
Seus outros amigos entenderiam, com certeza. Mentiriam na sua cara que ele não podia se matar, que estava errado e, pensar desse jeito, que haveria outra maneira, mas lá no fundo sabiam que o máximo que podiam dizer é: “fique com a gente, queremos você aqui”. O que se pode dizer a um suicida? A uma pessoa que encontrou nos braços da morte um refúgio? Que decidiu que quer morrer, ficar em paz? O que se pode dizer?
Decidiu, então, que ninguém saberia que planejava a própria morte.
Chegou a casa dando graças a Deus que morava sozinho.
Não queria olhar nos olhos de ninguém. Temia que pudessem olhar a janela de sua alma e ver de relance seu segredo.
Passou o resto da madrugada pensando em como sofreriam as pessoas que amava. Pensou em Colombina e em sua família. Em como iriam sofrer em vê-lo partir levado por tanta tristeza, nunca entendendo e pensando o que poderiam ter feito para prevenir isso. Pensou em seus amigos, que eram como ele. Será que seria uma inspiração? Será que seria o agouro de mais tragédias? Ainda que se sentisse um tanto hipócrita, não queria nem imaginar o suicídio de um amigo.
Ah, como Pierrô desejou nunca ter sido amado. Nunca ter sido fotografado e pendurado numa estante. Nunca ter escrito dedicatórias imensas e carinhosas. Nunca ter escrito cartas que declaravam a lealdade de sua amizade ou a intensidade de seu amor. Lembrou-se de todos os momentos, de todas as piadas, de todas as celebrações e de todos os carinhos que compartilhou e que sabia que haviam de ser lembrados pelos outros também. Desejou nunca ter deixado suas marcas no mundo.
O que já foi o fio condutor da sua vida, o amor dos outros, agora era como uma prisão. Se ele quisesse ter sucesso em morrer, precisava ser esquecido. O suicídio completo e verdadeiro seria o oblívio total de sua existência. Impossível de ser feito de acordo com esse sonho, Pierrô queria se aproximar dessa perfeição, diminuir o dano causado pela sua existência breve.
Decidiu se esconder em seu covil e planejar sua morte, até que pudesse deixar até mesmo nesse derradeiro ato mórbido uma marca meio apagada e esquecida de seu carinho.
Arlequim chegou à porta do apartamento do Pierrô sem saber o que iria encontrar. Era quase o fim da tarde, tinha saído mais cedo do estágio pra procurar o amigo. Bateu três vezes e foi atendido:
– Opa, Pi! Faz...um tempo que você não aparece, né?
– Arle, nem se preocupe. Entra aí. Acho que devo ter uma bera na geladeira.
Pierrô desapareceu por meses. Já tinha ouvido falar disso de um aluno de filosofia que, em meditações cartesianas, ficou em casa decidindo se existia ou não. Quando encontraram o coitado, estava com barba longa e com a casa em desordem. Pierrô, porém, estava com a aparência bem cuidada, diga-se de passagem que com o cabelo mal cortado, mas ainda assim, arrumado. Usava uma camiseta básica branca e um short de futebol, parecia bem confortável e limpo. Arlequim estava impressionado positivamente.
Sua casa estava impecável. Arlequim passou pela sala e ficou se perguntando se era permitido que a casa de um universitário sem dinheiro para empregada fosse tão organizada. Na mesa da sala havia uns recortes de estilete e umas páginas coladas.
– A que devo a honra, amigo?, disse entregando uma cerveja à visita.
– Cara, a real é que a gente tá meio preocupado com você, respondeu Arlequim, como se tivesse receio de explicar suas motivações.
– Tipo, eu seu que você some de vez em quando, para de falar com as pessoas, mas nunca passa de duas semanas.
Eu encontrei aquela sua amiga lá na XV e ela disse que você saiu cedo do aniversário dela. Ela disse que não se lembra de muita coisa e achou que tinha feito alguma coisa que te fez parar de falar com ela. Eu disse pra ela que você é meio assim, sumido. Ela é a última pessoa que te viu e o aniversário dela foi há dois meses! O Polichinelo ficou esperando você marcar a praia e o Pagliacci disse que você tinha ficado de ver Steve Zissou com ele. Sei lá, eu fui juntando as coisas e resolvi ver se você tava ok.
– Pera, cara, relaxa, riu Pierrô. Não precisa ficar se explicando. Nessa cidade, parece que visitar os outros é até ilegal. Olha, eu pareço não estar ok? Na moral, eu só estava meio cansado de ir para a faculdade, mas estou em uns projetos paralelos.
Apontou para uma mesa cheia de figuras, páginas recortadas de revista, caracteres soltos e estiletes.
– Estou aprendendo como diagramavam páginas antes do InDesign, meio punk, meio zine mesmo. Louco, né? Você tá ligado que eu tava meio que a fim de mudar de curso...
Um silêncio reinou por alguns segundos.
– Ai, cara, que alívio. De verdade, você parece até melhor que antes. Quando eu entrei aqui, já pensei que era nada a ver vir pra cá. Seu apartamento está mais bacana agora, by the way.
Arlequim terminou sua cerveja e se levantou.
– Acho que não tenho nada a fazer aqui, né? Até mais, grande Pi! Vê se aparece, hein? Vai ter uma festa na piscina do Pantalone fim de semana que vem!
– Pode deixar, Arle. É longe pra caralho, mas apareço, terminou rindo.
Assim que a porta fechou, Pierrô correu até o banheiro. Engasgando e soluçando, trouxe até a bile para fora.
“É a isso que tudo se resume – todos os nossos sonhos, esperanças e aspirações?”, perguntava a si mesmo. “Nada...além de vômito?”. Sentia vergonha de ter fingido tanto, de ter mentido tão bem. Lembrou-se de Colombina e da sua promessa. Não podia fazer mais nada agora, tudo era tão intenso e triste. Decidiu adiantar seu encontro com o ceifador.
Encheu sua banheira com água quente e entrou como estava. Respirou oito vezes, se concentrou e abriu a artéria do pulso direito com uma faca de artesanato, tomando o cuidado devido para não romper os tendões. Era uma dor aguda crescente, como se cortar com a tesoura, mas de maneira mais contínua e intensa. Cerrando os dentes com todas as forças, conseguiu cortar também o pulso esquerdo, com um pouco menos de habilidade. Não conseguia parar de chorar, agora também pela dor. Viu sua camiseta se tingir de vermelho e mergulhou mais na banheira.
A água quente o anestesiou um pouco, apesar de ainda sentir seus pulsos em uma leve ardência, latejando. Já não sentia mais suas preocupações, como se estas estivessem se esvaído junto com seu sangue por seus pulsos. Não sentiu mais o gosto da morte que vomitar tinha lhe deixado na boca. Logo não sentiu nem mais a vontade de chorar à própria tragédia. Uma paz estranha agora reinava. O sol lá fora se punha, fazendo discreto arco-íris nos azulejos do banheiro, e aquecia carinhosamente o ambiente.
Pierrô pensava como ele mesmo estava brilhando seus tons dourados no alvorecer de sua vida. “A morte, pensou, soa linda para mim.”
Morreu como viveu: com uma expressão superior no rosto, com olhos brilhando e um sorriso terno. Eram mais verdadeiros que nunca.